Era sexta-feira, e havia sido um dia ótimo. Choveu durante a manhã inteira, logo ao acordar saciei-me do tradicional: Preto, forte e com açúcar. É incrível a sensação finita e prazerosa que me dera aquele café acompanhado da sobra da noite anterior, três asas de frango deliciosamente salgadas, com aquele corinho tostado... A carne macia, os dois ossos que me desafiavam a buscar a carne, a cor dourada, que reluzia com a luz que entrava na janela fina da cozinha.
A tarde inteira tocando aquele violão velho, sem a quinta corda e que ainda conta com os autógrafos de alguma banda do passado. Trocando violão por celular, e música por conversa, me desatei daquela cadeira de madeira, com as pernas traseiras bambas e decidi ir atrás do programa da noite.
A chuva cessou a meia tarde, e seguida de um calor intenso me fazia brilhar a vontade de sair com meus melhores amigos, só sair. Aquela calça jeans que me incomoda na panturrilha direita, e aquele all-star velho, com a sola solta em um dos pés e o desenho de dois dados na ponta suja, resultados de uma aula insana e pobre em cultura.
A varanda daquele barzinho na avenida estava perfeita. O lugar não estava cheio, e o ar me fazia sentir tão puro, e ao mesmo tempo inquieto. Eu sentia vontade de falar, de conversar sobre tudo, porém, nunca me dava ao luxo de falar da minha pessoa. E no meio do papo divertido, meus olhos se encheram de lágrimas, pois essa era a primeira manifestação do meu corpo ao receber a brisa suava da noite, que só após lubrificar-me os olhos, levantava a franja pesada e em forma de S.
Aquele drink vermelho paixão com três pedras de gelo, tinha um gosto marcante, um gole ácido, que gelava o céu da boca, e passava pelas paredes da boca como o alumínio escorre em vidro, era perfeito, liso e forte na medida certa.
Estávamos a duas horas marcando presença sobre a calçada desnivelada e pintada com promoções, que nos davam mais assuntos. Então, no momento exato de sentir o prazer do manjar que já gelava a ponta dos meus dedos, exatamente atrás de um celta vermelho, com as rodas sujas e vidro entreaberto, vi Daniela.
Ela ainda caminhava da mesma forma, quase rebolando e com o bumbum empinado na medida certa, os cabelos voando levemente por detrás das orelhas, pescoço fino e alongado, os brincos grandes de argola que reluziam as luzes amarelas da cidade. Naquele momento eu admiti pra mim mesmo, Daniela ainda era o meu sonho.
Como num flash, todo o nosso passado veio à cabeça e num segundo a minha mente quase sem memória lembrava. As aulas que faltamos juntos, sentar com as pernas entrelaçadas na hora dos trabalhos, as desculpas que usávamos, e a coragem que eu dava a ela pra mentir pra sua mãe. Era a única maneira que eu tinha de ver e manter comigo aquela morena linda, alta e de olhos perolados.
Meus lábios quase queimaram com o gelo, e na minha mão, restava só o copo que continha, o que parecia ser naquele momento, o beijo molhado de Daniela.
Com cara de surpreso, levantei colocando rapidamente a mão no bolso furado da calça preferida e cheia de defeitos. As faces que esperavam uma explicação minha, subentenderam que o celular tocava em modo silencioso, pelo menos, foi o que eu consegui deixar transparecer naquele momento.
Como num passe de mágica, abaixei a franja erguida pelo vento e arrumei a barra da calça. A cinco metros daquela cintura que me fazia delirar, eu sentia Mont Blanc Individuel, o perfume rosa, doce que eu mesmo havia lhe indicado. Agindo sozinha minha boca chamou ‘Dani’, e eu tremi por inteiro. Reconhecendo logo minha voz, ela parou. Num lance rápido levando os cabelos pro lado direito, matou a saudade de três anos que tinham meus olhos. Eu já não sabia se era Dani perfeita, ou se ela era o que eu definia como perfeição.
A blusinha preta de gola aberta escondia os seios fartos, o tênis azul mórbido, que tinha a ponta do cadarço preto socada na lateral interna do pé e a calça jeans apertada quase sumiram quando aqueles olhos se espantaram amorosamente defronte a mim.
Num ato tremendamente rápido, eu sentia as costas quentes de Daniela, e ao mesmo tempo as suas unhas entrelaçando meus cabelos loiros e encaracolados, nos abraçamos e ali eu defini eternidade. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela, se referindo ao meu perfume soou baixinho: ‘Kaiak’. Eu ri por dentro e meus olhos se encheram de lágrimas.
Eu sentia suas coxas nas minhas, e sentia o aperto de seus seios em meu peito. Ela me apertou mais forte, e como num gesto de alívio deixou-se cair em meu ombro direito. Da forma mais sincera e amorosa que eu encontrei, beijei seu pescoço delicado com o pó bege fraco da maquiagem. O som dos carros e a música alta pareciam não ter vez. E então eu beijei aqueles lábios novamente, foi um prazer indescritível. De todos os nossos beijos, nossos momentos, aquele eu sentia ser o mais forte, e mais especial. Foi como se o barulho dos carros e da música alta cessassem de repente, num toque divino. Eu não conseguia mais largar aquele corpo, que considerava meu. Dani era tudo para mim, e eu havia deixado o destino nos separar. O arrependimento foi consumido pelo prazer de tê-la novamente, como uma segunda chance impossível.
Enquanto minha mão passeava pelo lado esquerdo do seu corpo, ela ia se entregando. Eu senti minha boca gelar, meus lábios friamente arderam, e o gosto que eu sentia em minha boca era o doce ácido e forte. Num instante eu voltava a estar rodeado de boas companhias na varanda e sentia meus pés na rachadura da calçada. Percebi que não haviam passados três segundos, e aquele gole passara a ser divino. Por um momento eu não conseguia tirar o olho do copo quadrado que se arredondava até formar um círculo perfeito na boca. Direcionei meus olhos para o carro vermelho, e lá só restava à fachada azul de um hotel de quinta. Com a cabeça completamente tomada, eu me senti no céu. Embora falsamente, eu senti tudo aquilo, e parte de mim ainda acreditava ter vivido os últimos minutos. Embora curto, foi o momento da minha vida. Durante dois minutos, foi Daniela.